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E a realidade? É possível construí-la a partir do discurso?



O QUE FALAR QUER DIZER


Qual a capacidade que um discurso tem de construir o mundo do qual trata? Senão a principal, essa é uma das questões mais importantes desenvolvidas por Pierre Bourdieu em seu “A Economia das Trocas Linguísticas: o que falar quer dizer”. O trecho que apresento abaixo busca ser uma resposta sintética a esta questão. Quem conhece a obra de Bourdieu sabe que síntese, frases e parágrafos curtos, assim como argumento direto, estão longe de ser algumas de suas principais características. Contudo, nas três páginas que compõem o texto introdutório da segunda parte do livro, ele consegue realizar uma súmula geral da sua compreensão sobre o problema.


Se tivesse que resumir ainda mais a resposta que Bourdieu produziu a questão, e isso fizesse na intenção de torná-la mais inteligível; compreensível aos não especialistas, escreveria que, segundo Bourdieu, a capacidade que os discursos têm de produzir o mundo não deve ser subestimada, como tradicionalmente se fazia até bem pouco tempo atrás. Por sua vez, como muito se faz atualmente, isso não significa que a realidade é mero discurso e que é possível explicar o discurso pelo discurso, como se ele fosse algo que se encerra em si mesmo.


Dessa forma, ainda de acordo com Bourdieu, a capacidade que um discurso tem de produzir o mundo e a sociedade é proporcional aos poderes e aos capitais (econômico, cultural e social) mobilizados por aquele que emite o discurso e pelos grupos e classes sociais que representa e que constrói ao falar sobre si e sobre os seus. Portanto, não há, nunca houve e nunca será possível existir uma separação absoluta entre aquilo que diz respeito ao universo do discurso e aquilo que se refere ao universo da realidade propriamente dita.



Um não é a resposta mecânica ao outro, são estruturas estruturadas e estruturantes, uma espécie de irmãos siameses, cujo fato de estarem ligados um ao outro não deve significar que sejam harmônicos e sempre coesos em tudo e a respeito de tudo. Todavia, para funcionar, buscam coesão e adesão (especialmente a dos profanos), sendo que a eficácia do discurso tanto será maior quanto mais ele conseguir mobilizar apoio e dialogar com o universo da prática, da realidade sobre a qual está tratando ou, por meio da elaboração de representações, buscando construir. Esse, em suma, é o Mistério do Ministério.


Na nossa vida, nas ditas sociedades modernas, como demonstra Bourdieu, a ciência se “encontra inevitavelmente engajada” na tarefa de produção do mundo e de representações sobre ele. Fato que ajuda a entender os motivos pelos quais certos discursos negacionistas, atualmente em voga, insistem em negar a validade do conhecimento científico. Da mesma forma, nos fazem refletir sobre os perigos representados pelos estudos que cientificamente insistem em postular que tudo, inclusive a realidade, não passa de discurso.


 

LINGUAGEM E PODER SIMBÓLICO


Introdução à parte II do livro “A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer” de Pierre Bourdieu, pp. 81-83


A ciência social lida com realidades já nomeadas e classificadas, portadoras de nomes próprios e de nomes comuns, de títulos, signos, siglas. Sob o risco de retomar por sua conta, sem o saber, atos de constituição cuja lógica e cuja necessidade ela ignora, a ciência social deve tomar como objeto as operações sociais de nomeação e os ritos de instituição através dos quais elas se realizam. Contudo, num nível ainda mais profundo, a ciência social precisa examinar a parte que cabe às palavras na construção das coisas sociais, bem como a contribuição que a luta entre classificações, dimensão de toda luta de classes, traz à constituição das classes, classes de idade, classes sexuais ou classes sociais, clãs, tribos, etnias ou nações.



Conferindo à linguagem e, de modo mais geral, às representações, uma eficácia propriamente simbólica de construção da realidade, a teoria neokantiana é perfeitamente procedente quando se aplica ao mundo social: ao estruturar a percepção que os agentes sociais têm do mundo social, a nomeação contribui para constituir a estrutura desse mundo, de uma maneira tanto mais profunda quanto mais amplamente reconhecida (isto é, autorizada). Todo agente social aspira, na medida de seus meios, a este poder de nomear e de constituir o mundo nomeando-o: mexericos, calúnias, maledicências, insultos, elogios, acusações, críticas, polêmicas, louvações, são apenas a moeda cotidiana dos atos solenes e coletivos de nomeação, celebrações ou condenações de que se incumbem as autoridades universalmente reconhecidas. Ao contrário dos nomes comuns, que contam em seu favor com o sentido comum, o consenso, a homologein de todo um grupo, de tudo

que envolve o ato oficial de nomeação pelo qual um mandatário reconhecido concede um título oficial (como o diploma escolar), os "nomes qualificativos" ("idiota", "safado") de que se vale o insulto têm uma eficácia simbólica muito reduzida, em sua qualidade de idios logos, envolvendo a rigor apenas seu autor. Mas eles partilham com os demais uma intenção que se pode designar como performativa ou, mais simplesmente, mágica: o insulto, assim como a nomeação, pertence à classe dos atos de instituição e de destituição mais ou menos fundados socialmente, através dos quais um indivíduo, agindo em seu próprio nome ou em nome de um grupo mais ou menos importante numérica e socialmente, quer transmitir a alguém o significado de que ele possui uma dada qualidade, querendo ao mesmo tempo cobrar de seu interlocutor que se comporte em conformidade com a essência social que lhe é assim atribuída.


Em resumo, a ciência social deve englobar na teoria do mundo social uma teoria do efeito de teoria que, ao contribuir para impor uma maneira mais ou menos autorizada de ver o mundo social, contribui para fazer a realidade desse mundo: a palavra, ou a fortiori, o ditado, o provérbio e todas as formas estereotipadas ou rituais de expressão, são programas de percepção. As diferentes estratégias, mais ou menos ritualizadas, da luta simbólica de todos os dias, assim como os grandes rituais coletivos de nomeação ou, melhor ainda, os enfrentamentos de visões e de previsões da luta propriamente política, encerram uma certa pretensão à autoridade simbólica enquanto poder socialmente reconhecido de impor uma certa visão do mundo social, ou seja, das divisões do mundo social. Em meio à luta para a imposição da visão legítima, na qual a própria ciência se encontra inevitavelmente engajada, os agentes detêm um poder proporcional a seu capital simbólico, ou seja, ao reconhecimento que recebem de um grupo: a autoridade que funda a eficácia performativa do discurso é um percipi, um ser conhecido e reconhecido, que permite impor um percipere, ou melhor, de se impor como se estivesse impondo oficialmente, perante todos e em nome de todos, o consenso sobre o sentido do mundo social que funda o senso comum.


O mistério da magia performativa resolve-se assim no mistério do ministério (conforme o jogo de palavras tão ao gosto dos canonistas), isto é, na alquimia da representação (nos diferentes sentidos do termo) através da qual o representante constitui o grupo que o constitui: o porta-voz dotado do poder pleno de falar e de agir em nome do grupo, falando sobre o grupo pela magia da palavra de ordem, é o substituto do grupo que existe somente por esta procuração. Grupo feito homem, ele personifica uma pessoa fictícia, que ele arranca do estado de mero agregado de indivíduos separados, permitindo-lhe agir e falar, através dele, "como um único homem". Em contrapartida, ele recebe o direito de falar e de agir em nome do grupo, de "se tomar pelo" grupo que ele encarna, de se identificar com a função à qual ele "se entrega de corpo e alma", dando assim um corpo biológico a um corpo constituído. Status est magistratus, "o Estado sou eu".


Ou então, o que dá no mesmo, o mundo é minha representação.



REFERÊNCIA

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguisticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 2008, pp. 81-83.



 

COMENTÁRIOS INICIAIS

Marcio Antônio Both da Silva

Professor de História da Unioeste



Pop Ciência

Espaço destinado a publicar e divulgar textos sobre temas e questões históricas, tendo como foco principal a "Popularização" do conhecimento científico, especialemnte na área de humanidades.

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