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A Superinteressante invenção de Alexander von Humboldt

Considero que a afirmação correta sobre Humboldt seria a de que ele foi pioneiro em popularizar e condensar em uma obra coesa uma série de conhecimentos e pesquisas que andavam dispersos. Análises que eram resultado de pesquisas e do trabalho de pesquisadores que se espalhavam por diversos locais do mundo e que produziram suas reflexões em diferentes tempos históricos, inclusive, em relação a alguns assuntos, bem antes do que Humboldt.




Recentemente recebi - com certa surpresa, contentamento e desconfiança, confesso - uma mensagem de e-mail cujo autor se identificava como “editor da revista Superinteressante”. Ele dizia ter lido a resenha que publiquei na última edição da Revista Varia História do PPGH-UFMG, a qual tem como foco o livro A invenção da Natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt, de Andrea Wulf. Também informava que estava escrevendo sobre Humboldt e queria conversar comigo para “aprofundar alguns pontos que você levantou, para que o texto não se torne apenas mais um elogio à figura de Humboldt”.


No livro, Wulf produz a biografia de Alexander von Humboldt, um cientista reconhecido mundialmente, que no contexto do século XIX obteve muita fama e ficou conhecido por suas viagens a América Latina, pelas “descobertas” que fez e pelos livros que escreveu. Embora tenha caído em certo esquecimento, sua obra é deveras importante não só para o século XIX, mas também para o nosso tempo, pois foi pioneira em tratar de temas que hoje se tornaram “senso comum”, tais como a destruição ambiental, seus impactos na natureza e os riscos que ela representa para o futuro da humanidade na terra.


Na verdade, definir o trabalho de Humboldt como “pioneiro” talvez seja um primeiro problema possível de ser localizado nas biografias que vem sendo produzidas sobre ele. Isso inclui o livro de Andrea Wulf e a matéria recentemente publicada na revista Superinteressante, na qual, ao final do texto, sou apresentado como fonte.


Embora não seja um especialista na obra, na trajetória e na história de Humboldt, a partir das leituras que fiz para escrever a resenha, especialmente das análises produzidas por Jorge Cañizares-Esguerra, considero que a afirmação correta sobre Humboldt seria a de que ele foi pioneiro em popularizar e condensar em uma obra coesa uma série de conhecimentos e pesquisas que andavam dispersos. Análises que eram resultado de pesquisas e do trabalho de pesquisadores que se espalhavam por diversos locais do mundo e que produziram suas reflexões em diferentes tempos históricos, inclusive, em relação a alguns assuntos, bem antes do que Humboldt e, às vezes, com maior qualidade.


Enfim, dar a Humboldt o epíteto de “pai da ecologia”, de um “homem a frente de seu tempo” – prafrentex nos termos da Superinteressante – é cair na chamada “ilusão biográfica” de que trata Pierre Bourdieu. Em outros termos, atuar na construção de um herói que, por ser alemão e por ter produzido coisas que se tornaram parte do cotidiano das pessoas, injustamente “caiu no esquecimento”. Em síntese é tratar de uma trajetória sem dar a devida importância ao contexto em que o biografado viveu, ao lugar que ocupava na sociedade e as posições que mantinha e defendia no campo em que atuava, no caso de Humboldt, o chamado "campo científico".


Na mesma direção, tratá-lo unicamente como "gênio", tendo a perspectiva de que sua "genialidade" era algo inato, somente dele e como que natural a ele é incorrer em outro erro perigoso. Neste caso, um importante estudo que pode nos ajudar a entender os problemas e os significados de se realizar esse tipo de abordagem é o Mozart: a sociologia de um gênio de autoria de Norbert Elias. Outro texto que pode ser referencial neste sentido e que vale a pena ser lido é o Esboço de autoanálise de autoria de Pierre Bourdieu. Em resumo, não nos faltam exemplos bibliográficos que podem servir de referência para questionar os textos biográficos que insistem em criar heróis e mitos.



Porém, não estou aqui relativizando ou mesmo negando a importância do trabalho de Humboldt para o desenvolvimento do conhecimento científico, mesmo afirmando que ele não teve protagonismo nenhum ou que não fez descoberta nenhuma. Tal como o autor da matéria da Superinteressante chama atenção, Humboldt pode ser considerado uma espécie de Stephen Hawking do século XIX.


Contudo, a analogia não pode ocultar o fato de que, como no caso do físico contemporâneo recentemente falecido, a obra e a atuação de Humboldt só podem ser compreendidas em seus significados mais completos se inseridas em um contexto maior, no tempo histórico, na sociedade que viveu e, para usar um termo caro a Norbert Elias, nas posições que ocupava nessa "figuração social".



Stephen Hawking


No livro de Wulf e no texto da Superinteressante, esses fatores estão presentes, mas com algumas nuances que não podem ser desconsideradas. Nos dois casos, está presente o reconhecimento de que Humboldt fazia parte de uma comunidade de pesquisadores muito dinâmica e produtiva no período em que ele existiu e produziu sua obra. Na mesma direção também é possível localizar toda uma ênfase em destacar o quanto o seu trabalho proporcionou ferramentas para que novos pesquisadores desenvolvessem suas análises, este é o caso de Darwin, por exemplo.


Todavia, este reconhecimento está totalmente direcionado a pensadores europeus ou estadunidenses. Portanto, poucas ou quase nenhuma palavra é escrita no sentido de registrar que, no contexto dos países que visitou em sua viagem pela América Latina, Humboldt teve contato com pesquisadores locais e com eles aprendeu muito daquilo que ainda hoje é apresentado como "invenção" sua, como obra de sua mente genial. Inclusive o seu famoso "infográfico" do monte Chimborazo, que ganha destaque todo especial na Superinteressante, na época de sua publicação, foi objeto dos seguintes comentários do cientista colombiano Francisco José Caldas:



Dane-se Humboldt!
Como os prussianos poderiam reivindicar alguma autoridade sobre a distribuição geográfica no Chimborazo se Humboldt o escalou uma vez por algumas horas e depois partiu? Os mapas de Humboldt são bonitos, mas errados. De fato, empiricamente eles são uma porcaria. Deixe-me dizer como realmente fazer para mapear a distribuição biológica. Aqui estão alguns mapas da distribuição biológica para várias plantas (em cores diferentes) no norte dos Andes. Eles incluem várias medições paralelas de temperatura, pressão barométrica, alturas e outras variáveis. Tchau. Não deixe que os percevejos te mordam, grande homem! (Trecho de carta enviada por Francisco José Caldas ao médico e naturalista espanhol José Mutis)

Francisco José Caldas e seus mapas do Chimborazo


Vale lembrar que o próprio Humbold também demorou para reconhecer que a base de algumas de suas “descobertas” estava alicerçada em pesquisas desenvolvidas por cientistas latino-americanos. Tal constatação até está presente na matéria da revista Superinteressante quando os contatos e desavenças de Humboldt com José Caldas e José Mutis são mencionadas, mas com tamanha rapidez que a ideia inicialmente apresentada de “não fazer mais um elogio à figura de Humboldt” foi por terra, rolou Chimborazo abaixo!


Chimborazo é um estratovulcão do Equador. É a mais alta montanha do país e do mundo, se medida desde o topo até ao centro da Terra.


Entre outras questões, faltou informar aos leitores que o naturalista alemão demorou 23 anos para reconhecer o protagonismo e a precisão de Caldas na exploração e no conhecimento da biologia e da geografia latino-americanas. Enfim, que a concepção de mundo expressa em seu infográfico não era tão nova e tão dele assim. Além disso, que os mapas de Caldas eram muito mais bem feitos e precisos do que aqueles "criados" pela genialidade de Humboldt.


De todo modo, quero registrar que a conversa que mantive com Bruno Vaiano, o jornalista autor da matéria da Superinteressante, foi muito INTERESSANTE e produtiva. Ficamos entre uma hora e meia ou duas horas trocando ideias sobre a heroicização de Humboldt, sobre o eurocentrismo muito presente na biografia escrita por Wulf, sobre as qualidades do texto que ela produziu, sobre a importância dos conhecimentos e alertas feitos por Humboldt a respeito do modo perigoso como a humanidade vinha e vem se relacionando com o mundo natural. Nesse contexto, também conversamos muito sobre a ciência e a produção do conhecimento científico no Brasil e na América Latina do século XIX.


Uma das notas que foi muito tocada ao longo de nosso bate-papo ressoou no sentido de demonstrar que, ao contrário do que é voz corrente, a produção de conhecimento científico no Brasil e na América Latina não é coetânea do século XX como querem algumas interpretações. Nessa linha, também busquei destacar que não somos meros repetidores de conhecimentos produzidos em outras paragens.


No caso do Brasil, tanto na Colônia como no Império, é possível localizar a presença de instituições, institutos, escolas e pesquisadores produzindo cientificamente e, em alguns casos, com certo protagonismo.


Mencionei, por exemplo, o fato de que nos laboratórios do Museu Nacional, entre as décadas de 1870 e 1880, foi produzido um soro antiofídico cuja eficácia e eficiência foi internacionalmente reconhecida. Além disso, o trabalho dos cientistas envolvidos na produção desse soro foi objeto de diferentes publicações em periódicos científicos de diversos países do mundo, sendo que há ampla documentação sobre este tema a espera de ser analisada nos arquivos da Biblioteca do Museu Nacional (a parte que escapou ao incêndio).


Museu Nacional antes do incêndio


Um assunto sobre o qual pouco conversamos, mas que é de importância ímpar em toda essa história de ciência e de cientistas, que é valido para o Brasil, para a América Latina e para o mundo como um todo - que aproveito este espaço para abordar ainda que rapidamente - é o de que, em diferentes temporalidades, também temos o envolvimento direto de mulheres atuando na produção da ciência e do conhecimento científico. Contudo, pouco conhecemos dessa história.


Lembro agora do livro Nas margens: três mulheres do século XVII, no qual a historiadora Natalie Zemon Davis busca contar um pouco dos liames dessa história de mulheres, seu envolvimento com a ciência e os significados disso tudo. Entre outras coisas, Davis demonstra o quanto os cientistas e a história da ciência recorrentemente contada, falham em não dar a devida atenção ao protagonismo feminino nesse campo.


Porém, esse é tema que merece uma atenção especial... Quem sabe algum leitor ou leitora se disponibilize a enviar um texto tratando desse assunto para ser publicado nessa louca Maloca.


Enfim, diante de tudo o que foi escrito, mesmo considerando que a conversa esteja produtiva e que a vontade de continuar escrevendo seja grande, convém fechar este texto. Para isso, retorno a alguns registros feitos no primeiro parágrafo.


Ressalto novamente que recebi o convite com surpresa, pois não esperava ser chamado a conversar sobre Humboldt, visto que não sou um profundo conhecedor da história do naturalista alemão, apenas escrevi uma resenha crítica da “ultima biografia” sobre ele traduzida aqui no Brasil. Além disso, esse tipo de aceno não é comum acontecer a um historiador localizado no interior do país, professor de uma universidade que é pouco conhecida.


Consequnetemente, o conteúdo do convite também gerou contentamento, pois li a mensagem como expressão do reconhecimento do trabalho realizado, principalmente porque ela era a prova real de que alguém havia lido a resenha que publiquei. Geralmente tenho a impressão de que as pessoas não leem as coisas que escrevo...


Todavia, juntamente com a supresa e a alegria, também senti outra sensação, a de desconfiança...


Confesso que fiquei com “a pulga atrás da orelha”, pois uma pergunta não saia da minha cabeça: o que uma revista produzida pela Editora Abril poderá produzir no sentido de reforçar aquilo que busquei destacar na resenha que publiquei na Revista Varia História, isto é, “a invenção de Humboldt”, sua heroicização? Em outras palavras, ficava pensando comigo mesmo: será que não vou chancelar um texto que, ao fim e ao cabo, vai jogar água para o moinho da refundação do mito Humboldt e para todo o conteúdo eurocêntrico que ele carrega?



Alexander von Humboldt, pintura de Friedrich Georg Weitsch, 1806.


A conversa com o jovem jornalista que produziu o artigo havia me convencido que isso não iria acontecer. Saí dela com uma boa impressão e esperançoso. Entretanto, a leitura do texto que foi publicado, com algumas pequenas e rápidas ressalvas, demonstra que minha esperança não se realizou completamente.


Mas isso é da vida, creio que no final de tudo tenha pesado de forma definitiva e eficiente a mão do editor chefe da revista e os vínculos sociais, históricos e políticos que a editora mantem. Enfim, pesou a mão de quem efetivamente manda na bagaça toda. Portanto, responsabilizar só o autor da matéria por ter jogado água para o moinho da figura heróica de Humboldt seria desconsiderar tudo o que escrevi até aqui, bem como as referências que usei para escrever o que escrevi.


De qualquer modo, fica o destaque de que o texto está muito bem produzido e não é mentiroso, mérito de seu autor. Todavia, lhe falta crítica, não diretamente a Humboldt, mas a construção do herói e seus significados. Isso é fundamental em um país que ultimamente vem acreditando e elegendo certos “mitos” para ocupar cargos importantes na administração dessa mal fadada república tupiniquim.



 

ESCRITO POR:

Marcio Antônio Both da Silva

Professor de História da Unioeste


Pop Ciência

Espaço destinado a publicar e divulgar textos sobre temas e questões históricas, tendo como foco principal a Popularização do conhecimento científico, especialemnte na área de humanidades.



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