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  • Foto do escritorMarcio Both

O Santo, o tempo e a língua



Ultimamente tem sido muito comum encontrar - seja em jornais, revistas, sites, páginas pessoais, blogs, perfis e sei lá mais o quê de possibilidades de vincular algum tipo de propaganda - anúncios de cursos, técnicas, meios idiossincráticos, ultra-master-inovadores de se "aprender" alguma língua estrangeira - falar, escrever, pensar e sonhar - em tempos recordes (dias, semanas, meses). 

Tais anúncios produzem certa inquietação em mim, pois tenho quase quarenta anos de idade, sendo que passei boa parte deles aprendendo a ler e a escrever (ensino fundamental, médio, graduação, mestrado e doutorado). Entretanto, continuo com várias dificuldades com o português (falado e escrito). ​Por exemplo, não possuo domínio nenhum sobre quando devo ou não usar a crase (por falar nisso, neste "a", vai crase?). Assim, quais as chances de aprender uma língua sobre a qual não guardo a mínima ideia de sua estrutura, dos seus rigores, segredos e regras em dois ou três meses?


 

Tese IX

Existe um quadro de Klee intitulado “Angelus Novus”. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante denós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade. - Walter Benjamin
 

Acredito não ser impossível realizar tal feito e também há que se reconhecer certa vantagem nele, pois o grunhido também é uma forma de comunicação. Da mesma maneira, é conveniente registrar que os motivos que levam alguém aprender um idioma diverso do nativo são vários, alguns deles podem ser profundamente utilitários. Em outras palavras, não é só em português que é possível falar muito sem dizer nada. Ou, de uma perspectiva não muito diversa, estudar outro idioma, o inglês com o fito de se tornar um futuro James Joyce, por exemplo, igualmente parece ser uma motivação um tanto sem sentido.


Mesmo assim, um dado interessante nas propagandas acima mencionadas é o de que o menor tempo de "aprendizagem" é referenciado como o grande diferencial. Não só, mas também é apresentado como motivo para que as pessoas escolham entre este ou aquele curso, método ou prática. Tal característica me faz lembrar que, há muitos séculos atrás, Santo Agostinho, um dos principais teólogos do cristianismo, escrevia a máxima de que sabia o que era o tempo, desde que não lhe fosse feita a pergunta sobre o que ele é.


Tal aforismo vem sendo repetido desde o momento em que foi produzido até os dias de hoje. Isto tanto é verdade que ele está sendo usado aqui, em um lugar que, nem no seu maior devaneio, Santo Agostinho imaginava um dia poder vir a existir: a rede mundial de computadores. Todavia, na sequencia do processo histórico, mais recentemente, mas ainda influenciados pela divisão produzida por Agostinho (tempo dos homens e tempo de Deus e/ou cidade dos homens e cidade de de Deus), na virada do século XIX para o XX, nossa sociedade avançou muito no sentido de cronometrar, de dividir o tempo e de matematiza-lo.


 

Particularmente, nós contemporâneos do século XXI, herdeiros consequentes desses momentos anteriores, convivemos com a compreensão de que o tempo é o menor espaço possível entre dois pontos; que os meios a serem utilizados para percorrer tal distância não têm grande importância, desde que sejam rápidos e eficientes na meta de alcançar os fins pragmáticos inicialmente traçados.


Em vista disto, se fôssemos aplicar esta nossa forma de lidar com o tempo, adequando-a de acordo com a lógica de Santo Agostinho, o suicídio seria uma regra na sociedade contemporânea, pois o único meio e o mais veloz caminho para chegar a Cidade de Deus é a morte da carne e a ascensão do espírito. Entretanto, segundo os princípios do cristianismo que Agostinho ajudou a fundamentar, a morte auto produzida impossibilita que o caminho seja percorrido com eficiência. Em outros termos, a forma como nos relacionamos com o tempo é só nossa e parece que já estamos completamente adequados à ela, afinal, acordar e chegar na hora significa aceitar determinada concepção de tempo. Em outras palavras, concordar com a hora.


 

Preámbulo a las instruciones para dar cuerda al reloj

Piensa en esto: cuando te regalan un reloj te regalan un pequeño infierno florido, una cadena de rosas, un calabozo de aire. No te dan solamente el reloj, que los cumplas muy felices y esperamos que te dure porque es de buena marca, suizo con áncora de rubíes; no te regalan solamente ese menudo picapedrero que te atarás a la muñeca y pasearás contigo. Te regalan —no lo saben, lo terrible es que no lo saben—, te regalan un nuevo pedazo frágil y precario de ti mismo, algo que es tuyo pero no es tu cuerpo, que hay que atar a tu cuerpo con su correa como un bracito desesperado colgándose de tu muñeca. Te regalan la necesidad de darle cuerda todos los días, la obligación de darle cuerda para que siga siendo un reloj; te regalan la obsesión de atender a la hora exacta en las vitrinas de las joyerías, en el anuncio por la radio, en el servicio telefónico. Te regalan el miedo de perderlo, de que te lo roben, de que se te caiga al suelo y se rompa. Te regalan su marca, y la seguridad de que es una marca mejor que las otras, te regalan la tendência a comparar tu reloj con los demás relojes. No te regalan un reloj, tú eres el regalado, a ti te ofrecen para el cumpleaños del reloj. - Julio Cortázar
 

Consequentemente, hoje em dia, ao optar por um curso, método ou técnica que mais rapidamente vai me fazer "aprender" uma determinada língua, em algum sentido, quer dizer que compartilho com a visão de que quanto mais rápido eu dirimir dada questão, mais adequada e perfeitamente ela será resolvida. Aqui uso o exemplo da aprendizagem de outro idioma, mas a constatação é válida para vários outros campos e escolhas. Por conseguinte, nossa percepção é a de que, ao escolher pelo trajeto mais curto, restará mais tempo para acumular tempo e depois vendê-lo ou ocupa-lo em outras coisas e atividades, consideradas mais importantes. A impressão é de que temos muito tempo, quando na verdade não temos tempo nenhum. Somos, na generalidade, seres sem tempo, pois gastamos nosso tempo fazendo coisas para economizar tempo.

Neste sentido, sempre é pertinente recordar a interpretação feita por Walter Benjamim, na sua nona tese sobre a história, do quadro Angelus Novus de Paul Klee: a tudo destruímos para podermos construir novamente e, sobre os escombros daquilo que foi destruído, vamos construindo e dando vida a um conjunto de coisas, as quais civilizadamente chamamos de progresso ou, em última instância, devem ser a sua expressão. Na mesma logica, também é importante apontar o quanto não nos empenhamos em aprender com o niilismo de Marx quando, no Manifesto Comunista, escrevia que "tudo aquilo que é sólido se desmancha no ar".


Atualmente, da mesma maneira que Santo Agostinho, quando perguntados, não sabemos responder o que é o tempo. Não obstante, diferentemente daqueles que passaram pelo mundo antes do teólogo - inclusive dele próprio anteriormente a sua conversão - desaprendemos a viver e saborear as coisas que fizemos no tempo. Ignoramos, em grande medida, o que é aprender no pleno sentido da palavra. Não há tempo para isso ou, para citar um ditado bastante atual e de grande repercussão: "time is money".


 

Angelus Novus - P. Klee, 1920

 

Enfim, o Santo nos ensinou a usar o tempo para alcançar a salvação. O mundo pós Santo, mais recentemente de forma ainda mais potencializada, nos ensinou a vender e comprar nosso tempo, embora não saibamos exatamente o que ele é. Porém, para dar conta disso e com ajuda de alguns dos preceitos elaborados pelo teólogo,  o homem precisou roubar do tempo o seu incomensurável valor humano, transformando-o numa mercadoria capaz de ser medida em horas, minutos e segundos. O problema é que, ao longo do tempo, viemos concordando com isso. Entre outras coisas, porque esquecemos de fazer o questionamento que Agostinho fez em suas Confissões, ou seja, o que é o tempo?

Da mesma forma, pouco avançamos na perspectiva de questionar os fundamentos duais das respostas produzidas pelo Santo, as quais vem sendo disseminadas de maneira muito eficiente desde o século V até os dias de hoje. Na verdade, a pergunta e os questionamentos sugeridos, em sua essência, são deveras perigosos, afinal, exigem muito tempo para serem resolvidos e, se forem levados até suas ultimas consequenciais, podem colocar em cheque a santidade do Santo. Além disso, sempre há o risco de não encontrarmos resposta nenhuma e, deste modo, ficarmos sem tempo para vender nosso tempo. Convertê-lo em dinheiro e, desta maneira, comprar algum dos equipamentos que o homem inventivamente construiu para maximizar o uso do tempo.   ​​



 

Ouça e Reflita


Time is Monkey - Uma indicação de Juliana Wandepap


 

Jão, a propaganda é a alma do negócio!


Texto originalmente publicado em 23/11/2016 em https://desinsubstancializando.weebly.com/notas-intepestivas/notas


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