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Como toda nudez será castigada, eu escolhi você!


Data da década de 1960 a publicação da crônica "O homem Nu", de autoria de Fernando Sabino. A história narrada na crônica, décadas depois, em 1996, inspirou filme que leva o mesmo título, o qual contou com roteiro produzido pelo próprio Fernando Sabino. De acordo com a classificação produzida para definir o filme, ele faz parte do "gênero comédia" e, como tal - de forma um tanto mais escrachada do que no texto da crônica - além de arrancar bons risos do espectador é atravessado por uma pertinente mensagem política.

O conteúdo da crônica e, por consequência, o do filme pode instigar o leitor ou o espectador a refletirem sobre os motivos pelos quais, em nossa sociedade, a nudez invariavelmente é objeto de sanção ou, para usar uma frase do polêmico e, em algum sentido amoral Nelson Rodrigues: por que é que "toda nudez será castigada"? A expressão é o título de uma peça teatral de autoria de Rodrigues e que também foi escrita na década de 1960. Na peça Rodrigues narra a história de Herculano, um homem que pertencia a uma família profundamente tradicional e que, devido aos reveses da vida, acaba casando com uma prostituta, fato que produz desordem no seio de sua família e vida.


 

O Homem Nu

— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho: — Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.  — Imagine que eu... A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito: — Valha-me Deus! O padeiro está nu! E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha: — Tem um homem pelado aqui na porta! Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava: — É um tarado! — Olha, que horror! — Não olha não! Já pra dentro, minha filha! Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta. — Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir. Não era: era o cobrador da televisão.
 

Nelson Rodrigues pode ser definido como um homem profundamente contraditório, pois produziu uma obra chocante em termos de seu conteúdo, mas suas posições políticas enredaram por outros rumos. O conjunto de seus escritos literários tem a perspicácia de questionar e por a nu muitos dos aspectos que dizem respeito a vida cotidiana, a moral ou a falsa moral que se referem aos relacionamentos amorosos, sexuais, a religião e à família. Contudo, politicamente era de um conservadorismo tacanho. Entre outras coisas, em diferentes momentos de sua trajetória, não deixou de manifestar seu apoio a ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Assim, o contraditório está exatamente no fato de que, em seu conteúdo político e moral, a ditadura empunhava a bandeira da tradição, da família e da propriedade e pautava a defesa de valores que são objeto da ironia, por vezes sarcástica, de Rodrigues. Um contrassenso difícil de entender, não impossível de existir e de explicar, mas este não é o objetivo aqui.



Nelson Rodrigues


Não muito tempo depois de Sabino e de Rodrigues, nos finais da década de 1970, foi lançada a peça musical "Ópera do Malandro" de autoria de Chico Buarque de Holanda. Nela, assim como nas duas outras obras até o momento citadas, a nudez e as reações por ela geradas também está presente. Na verdade, é possível fazer certa relação entre o texto de Nelson Rodrigues e o de Chico Buarque. Proximidade que se resume ao texto, pois é importante registrar que Chico Buarque foi um crítico do regime ditatorial, tanto em sua obra quanto em seus posicionamentos. Todavia, é possível localizar sutis semelhanças a partir da aproximação do "Toda nudez será castigada" com a música "Geni e o Zepelim" que faz parte da Ópera. Nesta letra, Buarque narra as vicissitudes vividas por uma mulher, uma prostituta, que na peça teatral é interpretada por Genivaldo, um travesti que atende pelo apelido de Geni. Mesmo nome pelo qual responde  uma das principais personagens da peça de Rodrigues e que também carrega a particularidade de ser uma prostituta.



Trecho do Vídeoclipe


A apresentação destes autores e de algumas de suas obras não é aleatória, mas encontra justificativa porque recentemente, mais de 50 anos depois de a crônica "O Homem nu" ter sido publicada, ocorreram fatos que fazem  lembrar as três obras citadas e seus autores. Acontecimentos que evidenciam o quanto a nudez continua a gerar impacto na República Tupiniquim e quiçá no mundo inteiro. Faço referência ao recém lançado clipe musical de Clarice Falcão: "Eu escolhi você". Nele, genitálias masculinas e femininas são as protagonistas do enredo musical. A música é de letra simples e o vídeo não traz nada de muito arrojado, pornográfico, inovador ou desconhecido, pois trata-se de genitálias balançando ao ritmo de uma música. Portanto, qualquer tentativa de igualar o conteúdo da letra da música de Falcão com a obra de Sabino, Holanda ou Rodrigues, seria exagerar em demasiado no ponto de vista. Na verdade, o grande diferencial do videoclipe é a exibição de genitálias, as quais estão a mostra, totalmente nuas, sem esconderijo algum. Sobre a letra da música, cabe destacar ainda que ela não apresenta nada que vá muito além do lugar comum que caracteriza o universo das redes sociais.

Em outros termos, ao assistir o vídeo estamos diante única e simplesmente de genitálias a balançar. Elas não deveriam causar tanto alvoroço, afinal, quem não tem a sua? Portanto, estamos diante de algo bastante "comum", basta olhar para baixo para termos percepção de sua existência real e material...



Trecho do Videoclipe


Entretanto, a partir da junção dos dois (vídeo e música) temos a produção de efeitos interessantes, algo um tanto complexo, pois a soma de tudo e o modo de sua recepção geram reflexão, dúvida e questionamentos. Tanto é que o videoclipe, os fatos que acompanharam seu lançamento e as repercussões que produziu estão estampados nas capas de alguns jornais brasileiros desde o dia em que o clipe foi lançado. Senão assim, ocupam as páginas voltadas a discutir as coisas da cultura, da internet e do cotidiano de diferentes portais e periódicos. Muito desta repercussão é consequência do clipe ter sido excomungado do Youtube como se um herege fosse. A justificativa apresentada pelo site é a de que ele não cumpre os critérios de "nudez" determinados pelo portal de vídeos. Tais fatos, contudo, estão a indicar que a frase de Nelson Rodrigues não perdeu sua validade, isto é, a nudez atualmente ainda é castigada.

Castigar a nudez é algo bastante antigo na nossa sociedade e os motivos dela ser perseguida são vários. Entre outras coisas, ela provoca diferentes tipos de sensações, ações e reações, as quais podem ir do escárnio absoluto ao prazer absoluto ou a repulsa absoluta. Nossa formação cristã também é um dos fatores a interferir no modo como agimos com a nudez. Neste sentido, vale lembrar que um dos primeiros castigos estipulados ao "primeiro" casal, após Eva cometer o pecado original e carregar a humanidade para o caminho da perdição - segundo uma leitura muito comum da história bíblica - foi o de usar roupas. Contudo, trata-se da nossa formação dentro de uma determinada leitura do cristianismo. Há outras... Por exemplo, o livro "O reino de Deus está em vós" de Liev Tolstói, indica uma das outras possíveis visões.



Liev Tolstói


O homem nu de Sabino, por um ato do azar, se viu preso fora de casa e pelado no mundo, longe da proteção de suas roupas. Ao expor suas genitálias causou diferentes sensações (furor, espanto, admiração, graça, etc.) nas pessoas que com ele se defrontavam. Entre outras coisas, sua nudez inusitada, o levou a ser percebido como um louco, um criminoso, um tarado. A Geni de Nelson Rodrigues era uma prostituta, cuja nudez fascinava e perturbava. Genivaldo da Ópera do Malandro é um homem que representa uma mulher e, de um modo geral, a Geni de Chico Buarque, busca ser a representação da mulher pobre e prostituta, cuja nudez diuturnamente é castigada.

Todavia, mesmo passados tantos anos depois destas obras terem sido lançadas, nós os privilegiados habitantes do século XXI, continuamos castigando a nudez, por mais simples e ingênua que seja. Insistimos em permanecer presos nas amarras que nós mesmos inventamos para nos prender. Na verdade, parece que não sabemos muito o que fazer quando nos sentimos totalmente desatados. Fato que faz lembrar Nietszche, pois continuamos assassinando Zaratustra para, depois deste ato, retornamos ao - ainda que confuso - conforto seguro do fundo de nossa caverna. Logo, a conclusão é a de que ainda não estamos preparados para as vicissitudes e encantos da condição humana. Uma delas é a nossa nudez e, a outra, é a dificuldade que temos em questionar os motivos de nossa incapacidade de não nos espantarmos diante dela. Por outros termos, senão toda, uma parcela significativa da humanidade continua a ser total ignorante em relação ao corpo que tem e a sua sexualidade. Assim, não conhecemos plenamente nossa capacidade de realização. Somos limitados e insistimos em inventar coisas que nos limitam.



Geni e o Zepelim


De um modo geral, nos satisfaz mais o simulacro do que o real. Em outras palavras, na nossa sociedade não há problemas em se ter genitálias (elas nascem conosco), de, a partir de determinados critérios e regras, intima e pornograficamente pensarmos e nos relacionarmos com elas. A questão que o videoclipe e seu banimento estão a indicar, portanto, é a de que o problema está em mostrá-las, nos pensamentos que elas trazem a mente e também no modo como são mostradas e usadas. O ato de mostra-las expressa a sua efetividade real e isto pode chocar aqueles que a todo custo buscam esquecer ou negar sua existência, bem como o prazer e as alegrias que elas podem proporcionar. Afinal, é por meio delas que a humanidade se perpetua e não pela fabulosa ação das cegonhas. Da mesma maneira, os últimos acontecimentos (assassinato do trabalhador Luiz Carlos Ruas, ao defender um homossexual no dia 25.12, por exemplo) estão a demonstrar, das mais diferentes formas, que o sexo e a sexualidade são questões políticas por excelência. O modo como são mostradas, também é ato capaz de produzir espanto. Quando a intenção é fazer com que a genitália venha a público de maneira não pornográfica, o perigo parece ser ainda maior, pois esta ação pode levar ao questionamento dos motivos pelos quais elas, por origem e natureza, foram historicamente transformadas em partes contaminadas e contaminadoras do nosso corpo. Ou seja, porque cargas d'água o fato de serem genitálias, como que num ato mágico inexplicável, já as torna poluídas e/ou pornográficas.


Friedrich Nietzsche


Assim, tornar público aquilo que está escondido, nos faz refletir sobre nossos tabus, escolhas, regras e limitações, isto é, sobre os motivos pelos quais escondemos certas coisas. Da mesma maneira, nos incentiva a  pensar coletivamente, sendo que tais pensamentos podem levar ao agir social, político e histórico. Ao descobrirmos isto, entendemos porque a nudez ainda é castigada. Libertá-la é algo absolutamente perigoso, pois pode colocar a ordem em perigo e, desta forma, atrapalhar o progresso e anarquizar o mundo. Como naquela história em que o rei, enganado que fora pelo costureiro, estava vestido com uma roupa que "só os inteligentes podiam ver".  Estava pelado! Entretanto, ninguém tinha coragem de alerta-lo, seja porque era O rei, ou porque havia o risco de se passar por ignorante aos olhos da principal autoridade da nação. Noutro extremo, também estavam daqueles que, como o rei, "viam" a roupa. Ao agirem assim, buscavam firmar sua inteligência. Ao mesmo tempo, sabiam que questionar o rei seria o mesmo que questionar as bases onde estavam sustentadas as posições sociais que ocupavam e os privilégios a que tinham acesso. Entretanto, o espetáculo durou até o momento em que uma ingênua criança - esta sim inteligente no pleno sentido da palavra - de maneira questionadora gritou: "O Rei está nu!". Por fim, fica o registro de que no mundo contemporâneo o rei continua precisando ser despido e que poucas pessoas têm - aos gritos - chamado atenção para isto.


Eu Escolhi Você


Jão; Olhos abertos, Jão! O rei e o padeiro estão nus, precisamos despi-los ainda mais. Arrancar as roupas que nós mesmos colocamos neles.


Texto originalmente publicado em 22/12/2016 em

https://desinsubstancializando.weebly.com/notas-intepestivas

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