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O "Efeito Lúcifer" e sua lógica no cotidiano de uma prisão

Atualizado: 16 de dez. de 2020

Certa vez por curiosidade indaguei a um interno que trabalhava em um canteiro de trabalho se ele acaso saberia o motivo do assassinato do seu amigo, que havia passado alguns anos prisioneiro, o qual ocorreu dois dias após a concessão do seu alvará de soltura; ele respondeu: “Sr [...], ele morreu por causa de dois marrocos”.


O que você vê primerio? Anjos ou demônios?



Aspectos da "carreira desviante"


Eis que o Desinsubstancializando, o blog da Maloca, apresenta mais um texto voltado a tratar de questões que dizem respeito a vida no interior de uma Instituição Total.


Hoje nosso autor, além de apresentar algumas das experiências vividas na condição de agente penitenciário, munido das reflexões teóricas de um psicólogo social (Philip Zimbardo), de dois sociólogos (Howard Becker e Pierre Boudieu) e de um antropólogo (Erving Goffman), nos contará e apresentará uma discussão sobre a trajetória de dois criminosos considerados de alta periculosidade, neste texto identificados como Jack e Boni.


Boa leitura e não deixem de visitar os outros espaços dessa Unidade Maloca!


 

O "Efeito Lúcifer" e sua lógica no cotidiano de uma prisão


Na década de 1970, Philip Zimbardo, psicólogo social norte americano fez um experimento que tempos depois deu origem a um filme (O experimento, 2015). A base principal da experiência de Zimbardo baseou-se em dividir um grupo de estudantes universitários em dois grupos menores, sendo que na experiência um deles desempenharia papel de policiais e outro o de presidiários.


O objetivo principal era observar o comportamento dos dois grupos dentro de um espaço de tempo. Não nos deteremos muito no assunto, mas o que Zimbardo notou foi o uso da violência por parte do grupo que desempenhou o papel de policiais. Do mesmo modo, o caso das torturas feitas a prisioneiros iraquianos no presídio de Abu Ghraib durante a Guerra do Iraque, demonstra a recorrência desse padrão de comportamento.


No estudo pioneiro de Zimbardo, um fator que foi observado, que também se fez presente no caso de Abu Ghraib, é o de que há uma espécie de incorporação de fatores externos que possibilitam ao indivíduo uma transformação de conduta e caráter ao ponto de realizar atos de extrema violência. Entre outras coisas, isso acontece sob o pretexto da representação de uma autoridade ou instituição externa a qual o indivíduo está vinculado.


O Efeito Lúcifer

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=4mo4zAxE_NE


No aspecto contemporâneo do mundo das prisões, observamos que o experimento sobre a obediência cega, objeto de pesquisa de Zimbardo, podem ser empregadas para pensar tanto a conduta do indivíduo encarcerado quanto daqueles que os vigiam.


Antes de adentrar nas histórias de dois presidiários, as quais tive acesso a partir de conversas que mantive com eles, apresento a pergunta que orienta esse texto: quais são os impactos da vida encarcerada na vida de uma pessoa? Esse parece ser um problema de resposta óbvia. No entanto, alguns aspectos da história pessoal de Jack e Boni, dois internos do sistema prisional, demonstrarão que o problema é mais complexo do que inicialmente parece ser.


Durante a fase de pesquisa e escrita da dissertação de mestrado, entre os anos de 2014 e 2015, permaneci trabalhando basicamente na galeria onde se abrigam os presidiários considerados do “seguro”. Aqueles que pela natureza do seu crime não poderiam viver coletivamente com outros internos que comentaram crimes diversos dos seus. O interno do “seguro”, geralmente é praticante de crimes sexuais e, em decorrência disso, não terá sua integridade respeitada se colocado com internos assaltantes ou traficantes, por exemplo.


Esta galeria também abrigava internos indisciplinados, que por alguma razão transgrediram as normas da instituição contrariando alguma determinação da equipe dirigente e seus agentes. Neste caso, esta afronta às normas não tem relação com o artigo pelo qual o interno foi condenado, mas está relacionada a sua conduta e ao seu habitus dentro da instituição. Além disso, envolve igualmente a sua forma de transitar e se comportar entre os “irmãos” e os funcionários.



Os efeitos psicológicos e o drama de se encontrar dia e noite trancafiado por portas de ferro e blocos de concreto produzem situações perturbadoras. Realidade que tende a piorar se o sentenciado é afetado por crises de abstinência: fato muito comum no interior dos presídios.


Os motivos que levam a indisciplina são vários, mas tem muita relação com as disputas de espaços e de lideranças dentro e fora do ambiente prisional. São disputas e questões que podem ter início no interior do cárcere, mas também podem se espraiar para as “quebradas”: espaços delimitados fora dos presídios com suas lideranças autônomas, porém subordinadas apenas a um líder regional. As “quebradas” são lugares onde acontecem os acertos, mas estão alheios a Instituição Total e ao controle das regras do judiciário.



Sobre isso, certa vez por curiosidade indaguei a um interno que trabalhava em um canteiro de trabalho se ele acaso saberia o motivo do assassinato do seu amigo, que havia passado alguns anos prisioneiro, o qual ocorreu dois dias após a concessão do seu alvará de soltura; ele respondeu: “Sr [...], ele morreu por causa de dois marrocos”.


Em síntese, uma discussão que ocorreu dentro da cela por causa de dois pães (marrocos) terminou de forma trágica, resultando na morte de um dos envolvidos quando fora do presídio. Discussões entre criminosos são sempre resolvidas entre os criminosos de forma sigilosa, não se admitindo a interferências externas a este mundo.


No bloco em que desempenhei minhas funções durante os dois anos de mestrado, também era encarregado por receber os recém chegados. Pessoas que haviam passado pela fase da “implantação”, onde se faz a primeira abordagem, tiram-se as fotografias, executam-se as revistas minuciosas. Posteriormente a esse processo os condenados são conduzidos a uma “triagem” que tem duração de trinta dias.


É o tempo que passam por um processo de adaptação à nova realidade. Período em que eles aprendem a se "acostumar" com a vida na instituição onde, a depender da pena, terão de permanecer por anos, tal como o interno citado no primeiro texto.


Neste momento de adaptação em que o interno passa a ser socializado com o universo do presídios e a conhecer novos habitus, eles também apresendem a se reconhecer dentro de novas roupas e números, são uniformizados. Neste ambiente é permitido manter dois ou mais internos nas celas, desde que não tenham cometido crimes sexuais.


Esta galeria, o bloco do regime disciplinar diferenciado, é enorme e tem formato de “C”. Nela não é possível ter uma visão ampla do tipo panóptico. É composta por trinta e dois cubículos sendo dezesseis em cada galeria, as quais são separadas por um grande corredor que parece sem fim, mas que tem dimensão suficiente para passar uma fileira enorme de internos algemados um a um nos pés e mãos. Os cubículos tem a dimensão de seis metros quadrados e abrigam de dois a três internos.


Foi durante esse tempo que fiquei conhecido por ser da “ala democrática” dos "funcionários". Foi também nessa época que conheci alguns presidiários considerados de alta periculosidade, que por alguma razão passaram pelo bloco onde eu trabalhava, entre eles estão Jack e Boni, os principais personagens do texto de hoje.


Aos internos de alta periculosidade a vida da vítima não tem muito valor, mas as paredes e as grades com suas grossas portas de metais davam segurança para que nos momentos da ronda e das entregas das “blindadas” eu pudesse conhecer um pouco de suas histórias de vida: saber por exemplo quais eram as circunstâncias que os teriam levados ao cárcere.



Uma característica interessante no universo da vida encarcerada é a de que, independentemente dos artigos penais em que os condenados foram julgados, de qual "faculdade" [1] eram originários, os presos gostam de falar. Eles também demonstram interesse por conhecer a história do Brasil, contada por aqueles cuja liberdade permite estar dentro e fora da prisão.


Alguns poucos conseguem realizar o Exame Nacional do Ensino Médio. Pode ser que o motivo disso seja o de que a maioria nunca tenha terminado as séries iniciais do Ensino Fundamental.


De modo geral, pode-se dizer que a vida de todos nos presídios consiste em ser de altos e baixos. Foi assim que, após um tumulto seguido de tentativa de incêndio numa penitenciária próxima, Jack chegou na galeria onde eu trabalhava.


Boni, por sua vez, já fazia algum tempo que "morava" no primeiro cubículo da galeria. Seus artigos não eram compatíveis para convívio, Jack e Boni não poderiam dividir a mesma cela. Enquanto Boni era condenado por crimes sexuais, Jack acumulava latrocínio e homicídios.


A história do primeiro eu já conhecia com riqueza de detalhes. Quando estabeleci um primeiro diálogo com ele, perguntei quais eram os motivos de ter sido condenado, respondeu que era uma criação do próprio Estado: “Sr. [...] o Estado me fez assim”.


Para além do senso comum e da culpa de seu histórico ser atribuída ao Estado, Boni contou-me que seus pais o abandonaram na infância, sendo criado por pais adotivos, assim tinha que dividir espaços com seus irmãos de adoção. Longe da escola e morando em região rural, ele relatou ter sofrido violência sexual de seus irmãos mais velhos, sem que pudesse pedir ajuda. Essas violentas agressões em seu corpo, quando adulto, seriam reproduzidas em suas vítimas tornando-o um “maníaco”, sendo considerado um daqueles internos sem perspectiva de recuperação.


Porém, de dentro de sua cela insalubre e da sua falta de escolaridade, indicava como causa de seu comportamento desviante a ausência do Estado e a falta da instituição familiar. Algo possível de entender por meio dos aspectos teóricos de Zimbardo. Para este interno, cada dia que passava era uma vitória. Cada dia que passava sem a ocorrência de uma rebelião era uma conquista, uma vez que poderia ser uma possível vítima fatal dos rivais e desafetos.


Dramática também era a história de Jack. Na hora da contagem[2] de tarde parei em frente a sua cela e pela “bocuda”[3] percebi ele ao fundo da cela assustado ainda com os reflexos do incêndio do qual foi protagonista. Então, após um pouco de diálogo sobre a rotina da galeria, perguntei a ele qual o motivo de seu encarceramento.



Sua narrativa foi demasiada dramática, mas seu batismo no crime, em síntese, também era justificada pela ausência institucional, tal como Boni havia relatado. Jack disse que a ele faltaram oportunidades. Morador de uma favela, vivia em um barraco carente de infra estrutura, ficava o dia todo só em casa enquanto a sua mãe saia bem cedo para trabalhar de diarista.


Ao retornar a tardinha, a mãe percebia que ele não havia feito as atividades propostas como tarefas, em consequência, era alvo de uma surra com um pedaço de mangueira e, para completar o castigo, era obrigado a dormir fora do barraco. Na época em que isso acontecia Jack contava ter seis anos de idade. Neste caso, conforme narrou, não via motivações para ir à escola, embora matriculado.


Com o passar do tempo essa sequência de maus tratos resultariam na criação de um indivíduo de alta periculosidade, sendo um dos fundadores de uma organização criminosa que tem atuação considerada em um dos estados do Brasil. instituição com a qual posteriormente rompeu relações.


Jack também contou que em uma dessas vezes em que a sua mãe o expulsara de casa, criou “certa coragem” e iniciou sua vida no crime realizando pequenos furtos. Em um desses furtos conseguiu reunir dinheiro suficiente para comprar uma arma de fogo e drogas.


Em consequência, nosso personagem avançou um estágio na vida de criminoso e, da realização de pequenos furtos, passou praticar roubos maiores e, na um tempo depois, cometeu latrocínio, isto é, um roubo em que ocorre a morte da vítima.


A galeria em que trabalhei abrigava estes indivíduos. Jack foi visto na rebelião do início da década de 2000 carregando duas cabeças decepadas de desafetos, uma em cada uma das mãos.


Ao "funcionário" cabe a tarefa de lidar com essas penosas contradições. Tentar saber de cada um qual foi o ponto fora da curva que o levou a prisão. Em uma escala de trabalho de 24 horas, isso pode tornar o ambiente prisional menos "pesado".


Nesse sentido, a história de Boni e Jack, dois presidiários de alta periculosidade, que tem uma longa trajetória no crime, que precisam ser afastados de outros internos a fim de que não tenham suas vidas ceifadas, carrega dentro de si alguns aspectos que convém ressaltar.

Neste texto, gostaria de sublinhar um deles, aquele que nos diz que a pessoa não é criminosa por natureza, ela não nasce criminosa, mas, pensando juntamente com Howard Becker do livro “Outsiders”, pode-se dizer que a questão é processual e os internos percorrem os tortuosos caminhos de constituírem para si uma “carreira desviante”.


Vale lembrar também de Zimbardo ao se referir as torturas de presos no presídio de Abu Ghraib no Iraque; ao processo que ele chama de "o Efeito Lúcifer". Por sua vez, no mundo real da vida nos presídios e levando em conta alguns aspectos narrados pelos internos, é possível concluir que tal processo é atravessado por questões sociais, políticas, econômicas e institucionais. Não só os internos são institucionalizados, mas a equipe dirigente também.


Quanto ao social, ao político e ao econômico, como os próprios internos são perspicazes em responder quando questionados sobre os motivos de estarem encarcerados, a sua vida criminosa está relacionada a ausência do Estado em alguns momentos de sua vida.


Mais diretamente no sentido de cumprir o seu papel de garantir para que todos os cidadãos que estão sob a sombra de seu guarda-chuva tenham condições de terem uma vida digna com saúde, educação e habitação. Esta resposta pode parecer bastante comum e genérica, uma vez que é manejada constantemente pelos internos. Ela também é fruto de sua leitura de mundo e das suas estratégias de defesa, mas isso não deve significar que este fator não tenha relevância nenhuma.


Todavia, a presença do Estado em outros momentos igualmente cumpre papel importante na trajetória de um criminoso, especialmente depois de ingressarem na “carreira desviante” e galgarem seus degraus.


Esta carreira tem estágios que variam de acordo com cada personagem, mas envolve uma formação, produz uma espécie de capital cultural que é conhecido, reconhecido e valorizado. Por seu turno, o grau superior da carreira ocorre no interior dos presídios, espécies de “Universidades Públicas do Crime”. Não à toa, os internos dão a eles o significativo nome de “faculdade”.


Por conseguinte, quanto mais faculdades o indivíduo cursar, maior o seu capital simbólico, mais reconhecida sua carreira, maior e mais valorizado seu currículo. Esse reconhecimento e valoração é obra tanto dos internos e das relações que mantém entre si, quanto da equipe dirigente. Mas também é obra da sociedade como um todo, pois, como busquei demonstrar no texto anterior, o crime cometido e o artigo em que o criminoso é condenado definem quem ele é no interior da Instituição Total e tal definição provém de fora dela.


Por sua vez, a ela, a partir desta identidade construída, cumpre o papel de apresentar e representar o criminoso para os externos. Enfim, todo interno de uma Instituição Total é um estigmatizado, daí as dificuldades em se integrar a sociedade após passar por estes lugares.



O Experimento de aprisionamento de Standford


 

NOTAS:

[1] Os presídios são também chamados de faculdades pelos criminosos. São nessas faculdades que se aprendem as normas dos crimes e das facções. [2] Momento em que se faz a conferência de presos nas suas celas. Todas as celas tem um número e são checadas como os nomes e os prontuários de seus ocupantes. [3] Pequena abertura na porta da cela de 20 cm x 40 cm, onde se entrega as refeições aos internos.



 

ESCRITO POR:

Autor Anônimo


Escritas de Si

Escrever sobre si nunca é tarefa fácil. Este espaço do Desinsubstancializando tem como foco oportunizar um lugar para que seus leitores e participantes relatem suas experiências e trajetórias de vida.



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