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  • Foto do escritorJuliana Wendpap Batista

O mergulho de "João Gostoso": do jornal para o poema

Histórias e interpretações de uma notícia que virou poema



 

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL


João Gostoso era carregador de feira lIvre e morava no morro da Babilônia num barracão [sem número]

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.


Manuel Bandeira. Libertinagem, 1930


 

Esse é um breve texto para discorrer sobre o trágico fim de “João Gostoso”, personagem do “Poema retirado do jornal", do poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968). Ele compõe a obra intitulada "Libertinagem", lançada em 1930 e a qual marcou os modernistas, inaugurando uma nova fase na obra do poeta, sinalizada pelos especialistas pelo amadurecimento de seus escritos.


Por muito tempo, os versos instigaram a curiosidade de leitores e pesquisadores, que se interrogavam sobre a possibilidade do fato ter realmente acontecido. A relação com a imprensa, expressa pelo autor, já no título do poema, se encarregou de instigar a imaginação.


Foi também a imprensa que noticiou, em 2019, informações sobre a pesquisa do tema, tendo sido identificado o possível fato referenciado poeticamente por Bandeira. O evento, um suposto cenário de uma relação conjugal mediada pela passionalidade, traz então a figura de João, vulgo "João Gostoso".


O episódio relatado em vários jornais cariocas, em dezembro de 1925, narra o infortúnio do carregador da feira, cujo corpo foi encontrado sem vida na Lagoa Rodrigo de Freitas. Investigações do tema demonstraram que o tal “João Gostoso” já havia sido mencionado no jornal em 1916, quando agrediu sua mulher, a Rosa.


Fonte: https://iconografiadahistoria.com.br/


O caso de "João Gostoso", de notícia, virou poema, publicado na edição de 31 de dezembro de 1925, do jornal “A Noite” do Rio de Janeiro, na coluna “O Mês Modernista”.


A par das notícias do fato, as quais atualmente podem ser consultadas nos arquivos digitalizados dos jornais, nos importa aqui a sua singularização, alcançada por Manoel Bandeira. Considerando que o noticiário é parte constitutiva do cotidiano das pessoas, o poeta, com seu lirismo, operou na transformação de um evento, fazendo o sujeito "vulgar" eternizar-se em seus versos.


Neste sentido, Victor Chklovski faz lembrar que a “arte é pensar por imagens” e que a “a imagem poética é um dos meios de criar uma impressão máxima”. Trinta e oito palavras e cinco versos bastaram para Bandeira trazer ao leitor uma pequena série de imagens, que narram a desventura de João Gostoso, o qual, tal como sugerido pelas notícias, teria cometido suicídio, ao mergulhar nas águas do cartão postal carioca.


Ao pensar sobre a imagem elaborada em palavras por Manuel Bandeira é possível articular certa relação da percepção do poeta sobre a realidade das relações. Nisso, torna-se interessante lembrar a história Kholstomern, de Tolstói, a qual é narrada por um cavalo. Nesta narrativa, a reflexão sobre certas atitudes humanas é o foco. Talvez, a história mais marcante e que fará sentido nessa análise, seja aquela na qual o animal problematiza o fato das relações humanas estarem estruturadas a partir das noções meu/teu, as quais servem para mensurar o quanto somos felizes, à medida que acumulamos coisas e pessoas.


[…] os homens não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de Objetos diferentes mediante palavras convencionais. Essas palavras que consideram muito importantes, são, sobretudo, meu ou minha, teu ou tua. Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, aos seus semelhantes e aos cavalos. Além disto, convencionaram que uma pessoa só pode dizer meu a respeito de uma coisa determinada. E aquele que puder aplicar a palavra 'meu' a um número maior de coisas, segundo a 'convenção feita, considera-se a pessoa mais feliz. Não sei por que as coisas são desse modo; mas sei que são assim. Durante muito tempo procurei compreender isso, supondo que daí viria algum proveito direto; mas verifiquei que isso não era exato… Muitas pessoas das (que me chamavam seu cavalo nem mesmo me montavam; mas outras o faziam. Não eram elas as que me davam de comer, mas outros 'estranhos’. Também não eram as pessoas que me faziam bem, mas os cocheiros) os veterinários e, em geral, pessoas desconhecidas. Posteriormente, quando ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que o conceito de meu - e não só com relação a nós, cavalos - não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. O homem diz 'minha casa' mas nunca vive nela; preocupa-se só. Em construí-Ia e mantê-Ia. O comerciante diz 'minha loja', ou 'meus tecidos', por exemplo, mas não faz suas roupas com os melhores tecidos que vende na loja. Há pessoas que chamam sua uma extensão de terra e nunca a viram nem passaram por ela. Há outras que dizem serem suas certas pessoas que nunca viram nesta vida e a única relação que têm com elas consiste em causar-Ihes dano. Há homens que chamam de suas certas mulheres, e estas convivem com outros homens. As pessoas não procuram, em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a maneira de poder dizer do maior número possível de coisas: é meu (Tolstoi, 1962).

Arriscando uma interpretação, o trabalhador da feira, apresentado pelo poeta pernambucano, talvez vivesse a frustração de sempre carregar coisas que não eram suas. Os momentos de festa, eram a libertação do corpo e ter uma mulher, ou várias, talvez fosse seu triunfo. O ato de desistir, de abandonar a lida da vida, pode ter acontecido pela compreensão não assimilada de que os afetos não são bens comercializáveis. Isso sem pretensões de discutir os contratos de casamento.


Afinal, eles fazem sentido no plano em que se fala de “amor”, apenas quando ele é compartilhado e consentido, ainda que cumpram suas funções jurídicas socialmente constituídas. Enfim, amor tem mesmo muito mais a ver com dar e ser, do que ter. É possível cogitar, que não é esse o caso de "João Gostoso", cujo noticiário indicou brigas e desavenças, que desencadearam num fim trágico.


As nuances indicam que o caso remete à paixão e ao desenfreado desejo de ter. Seu mergulho nas águas pode indicar os perigos de uma paixão, vivida por alguém que abandona a razão, sendo essa apenas uma das possíveis leituras.



Robert Frank. Words, 1977


Sobre as reproduções das memórias do “Poema retirado do Jornal”, vale ressaltar o poema escrito por Antonio Carlos Secchin, o qual surge da pesquisa do professor e também como uma releitura dos versos de Manuel Bandeira. Nele, é acrescentada à ideia do infortúnio, as traições sofridas pelo personagem:


“Poema tirado de uma notícia de poema”: João Gostoso era feirante, amasiado com Rosa. Ela não era flor que se cheirasse./Um dia, cansado das traições, pegou uma pedra que tinha no meio do caminho do morro e a arremessou contra a mulher./Rosa, rubra de sangue, chamou a polícia. João sumiu. Gostoso se tornou puro desgosto./Nove anos depois, bêbado, concluiu que era hora de acabar com tudo./E se atirou, nu, dentro de um poema de Manuel Bandeira.

Sem intenções de questionar a liberdade criativa de seu autor, há que lembrar-se o fato da tal reelaboração ter sido mediada pela percepção social de outro artista. Isso faz notar o quanto, em pleno século XXI, ainda estamos acostumados a culpabilizar as mulheres e seus corpos pelo desejo. Resta apenas, sugerir a questão: se fora "João, o gostoso", porque foi ele que se afogou. Teria sido o excesso ou a falta de certezas? Ou seria a vaidade outra coadjuvante dessa história?



“Alumbramentos”, Manuel Bandeira, 1960. Desenhos de Marcel Gromaire


A resposta para a questão reside na própria poesia e na leitura que fizemos dela. No jogo das palavras entre imagens, que constroem nossos próprios cotidianos, e na maneira como fazemos nossas escolhas.


Manuel Bandeira, o “Habitante de Passárgada”, com simplicidade e economia de energias, discorreu em seus poemas sobre o cotidiano e suas melancolias, sobre a morte e o alumbramento da vida. Diagnosticado, ainda muito jovem como tuberculoso, teve sua vida e relacionamentos afetados pela doença. Ainda assim, teve uma vida longa e de intensa produção, morreu com mais de oitenta anos, o que indica que a poesia muito lhe ajudou a navegar a vida, sem naufragar ou perder-se de vista.


 

Testamento - Manuel Bandeira


 


REFERÊNCIAS:


CHKLÓVSKI, Victor. “A arte como procedimento”. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). Teoria da Literatura: Formalistas Russos (3ª ed.). Porto Alegre: Editora Globo, 1976, pp. 39-56.


L. Tolstol. KhoJstomer, de Lembranças e Narrativas, em Obra Completa. vol. III. Tradução da novela pôr Milton Amado. Editora: José Agulllar. Ltda. Rio de Janeiro, 1962. (N. do Trad.)


ANTENORE, Armando. O infortúnio de João Gostoso. In: Revista Piauí [online], Ed. 155, agosto, 2019. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-infortunio-de-joao-gostoso/, acesso em 23/11/2020.


 

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ESCRITO POR:

Juliana Wendpap Batista

Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense



Literatura e Sociedade

Seção destinada a debater as relações possíveis entre Literatura, História e Política. Por meio da análise dessas conexões, o objetivo é compreender os diferentes aspectos que compõem a vida em sociedade e suas relações possíveis.


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