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  • Foto do escritorJuliana Wendpap Batista

O que Franz Kafka tem a nos dizer sobre seu voto?



LORCA, German. Rio Tietê - Ponte das Bandeiras, 1950. Via: Museu de Arte Moderna de São Paulo. Disponível em: https://mam.org.br/acervo/2000-055-lorca-german/



Um conto no qual o protagonista é uma ponte, mas não uma qualquer. Trata-se do próprio narrador, objetificado pela metáfora e, assim, marcado pela ambiguidade. É uma ponte que sente feito o homem. Sente com as características daquilo que julga o inerte. Enquanto homem-ponte “sente-se frio e rígido”, com um fim determinado, pois “nenhuma ponte pode deixar de ser ponte sem desabar”.


O gestual da narrativa se encarrega de tornar vivo aquilo que não seria, tal como os pés e mãos dessa ponte, os quais estão fincados nos lados opostos, deixando visível que as abas de seu casaco flutuam, enquanto permanece estendido sobre o abismo. Situada em lugar inóspito “não localizado nos mapas”, e, pelo qual “nenhum turista se aventurava”, demarca um espaço atemporal, entre o sonho e a realidade.


Narrado em primeira pessoa, evoca o estranhamento que fica explícito no momento em que a ponte percebe a aproximação de uma pessoa. O estrangeiro também traz a ambiguidade consigo, e o encontro, o qual tornaria possível à ponte ter sua utilidade finalmente comprovada, acaba por transformar-se em sua própria destruição.



Parábolas Kafkianas - A PONTE



A curta parábola de Kafka, escrita entre 1916/1917, revela seus sentidos quando compreendida a partir da contextualização de sua produção, um tempo em que esperanças e angústias conhecem novos limites e autores com Marx, Nietzshe e Freud. É o tempo das revoluções, da insurgência dos estados totalitários, da ascensão da burguesia e da vida nas metrópoles. Transformações que operaram nas relações sociais, em ambientes nos quais o capital e o trabalho redefiniram as subjetividades. É também o momento das experimentações e da busca de novas linguagens, que fizeram surgir o cinema, o dadaísmo, o surrealismo e a dita literatura fantástica.


Franz Kafka caracteriza-se como uma figura de difícil localização nesse panorama. Sua trajetória é referenciada por três diferentes culturas: a judaica, a tcheca e a alemã, sendo possível cogitar que não se adaptou a nenhuma delas. Ele mesmo era um estranho.


Como judeu não pertencia ao mundo cristão, mas, por outro lado também era indiferente como judeu. Por falar alemão, não afinava com os tchecos. Como judeu, de língua alemã, não se encaixava aos alemães da Boêmia e como tal, não pertencia a Áustria. Era filho da “classe média”, e assim não se adaptava ao operariado, mas como funcionário da burocracia também não era de todo burguês. Não pertencia ao escritório, era um escritor, o qual, no entanto, sacrificava-se pela família.


Foi um escritor de diários e explorou elementos do absurdo e do fantástico no limite daquilo que provém do cotidiano, do familiar. Tinha por hábito queimar seus escritos e o que sobrou de sua obra foi aquilo que não acabou na fogueira das consideradas “artes degeneradas”, pelo regime nazista, e também por que o amigo (Max Brod), o qual fora encarregado, pelo próprio Kafka, de dar cabo aos seus escritos, não cumpriu o prometido.


Foi oriundo de uma sociedade que se queria iluminista, mas que a contrapelo fez acontecer a Primeira Grande Guerra Mundial. Foi também contemporâneo do genocídio armênio e seus escritos revelam o dilema da liberdade e do compromisso, do sonho de viver junto, mas com exercício de liberdade.



Fotografia de Walker Evans - Damaged (1928-1930).



“A Ponte” traz elementos que se inserem como uma das chaves da obra de Kafka, ou seja, o uso de cenas abjetas, que apresentam animais e objetos, como uma erupção do recalque. Parte daquilo que o filósofo Adorno viria a denominar como uma invasão sublime da arte no pós-romantismo. Uma ruptura do decoro, com a utilização de elementos violentos e não simbolizáveis. A representação de uma realidade violenta caracterizada pela modernidade e o surgimento dos estados nacionais e sua violência que parte de rotinas diárias de 14/15h de trabalho para mulheres e crianças.


A ponte pode remeter ao modelo iluminista, no qual o homem ideal, deveria resistir com razão e, assim, sobreviver ao trágico, mesmo em escombros. O uso do gênero parábola expõe o esgotamento da forma romance, propondo retraçar as formas literárias. Isso transparece também na temporalidade enlouquecida, na qual a relação do indivíduo e da sociedade também estão deslocadas.


“A Ponte” vive no território entre o sono e a vigília, no limite entre o sonho e o despertar. A noção de “mal-estar”, ligada a animalização e humanização, pode ser observada em sua obra, como a percepção de um artista pensador, o qual buscava um diálogo com a ciência (era um admirador de Darwin) e estava interessado na psicanálise freudiana. Sua narrativa “deslouca o mal-estar”, ao transformá-lo em literatura.


Dessa forma, o mal-estar surge como uma espécie de dispositivo capaz de fazer refletir sobre o mesmo, permitindo a apropriação deste pelo leitor, de maneira que ele não se deixe dominar. Segundo Guattari, Kafka não deve ser considerado escritor de uma literatura da depressão, mas sim o criador de uma literatura que permite o olhar crítico e irônico frente ao mal-estar. A narrativa também pode ser observada como representação da esquizofrenia dos tempos modernos, as fragmentações e medos que imobilizam e condicionam os seres.



Ruindo (WEBCENAS - 2020)



Kafka viveu intensos embates com o próprio pai e criticou as hierarquizações e o limite das leis. O Fantástico, de caráter amedrontador, ou o grotesco, absurdo e até tragicômico, em sua obra tendem a provocar questionamentos sobre a realidade.


A alienação, rejeitada em suas diversas formas por Kafka, seja a família, profissão, dinheiro, sistemas filosóficos, religião e o patriotismo, é tema recorrente em seus escritos e pode ser observado no destino de toda “ponte”. O universo desse escritor tcheco aponta para a solidão como fenômeno social, capaz de dilacerar subjetividades e desumanizar a sociedade como um todo.


Assim, a literatura de Kafka nos permite perceber que a alienação do sujeito moderno trouxe consigo a culpa para o corpo. Esse que pode ser entendido como a própria ponte, incapaz de cumprir sua única função que é servir de elo. Nesse sentido, fica uma pergunta, como sustentar a diferença do outro, ou de outros corpos sem ruir? Como ser a ponte? Como compreender os limites da liberdade e do auto aniquilamento? Ou ainda, buscando outra metáfora, como o corpo leitor pode suportar todos os sentidos desse texto sem transformar-se, sendo que do fantástico surge uma realidade à qual, em circunstâncias normais, nos recusamos a enxergar.


Na reflexão, pode residir a condição para o elo, um espaço real alimentado pelo sonho da diversidade e união. Não obstante, o que resta é ironia mesmo, e, em tempos que a guerra volta aos jornais alavancada pela intolerância, quem sabe seja uma boa ideia usar a arma do seu voto, ou, começar a fazer “aulas de natação”.



 


Referências:


BLUMENTHAL, Thiago. O veredicto iídiche de Franz Kafka In: O Estado da Arte. 23/11/2017. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/o-veredicto-iidiche-de-franz-kafka/


MASEO, Benito Eduardo Araújo. Kafka: estética e política do estranhamento. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade de São. São Paulo. 2013.


SELIGMANN-SILVA, Márcio. Mal-estar na cultura: corpo e animalidade em Kafka, Freud e Coetzee. Alea , Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, pág. 205-222, dezembro de 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2010000200002&lng=en&nrm=iso>. acesso em 14 de novembro de 2020.  https://doi.org/10.1590/S1517-106X2010000200002 .


SILVA, Alexandre Moraes da. A PONTE, O ABISMO E OS DOIS TERRITÓRIOS DA ESQUIZOFRENIA Uma aproximação com a fábula "A ponte", de Franz Kafka. Disponível em: https://www.ufrgs.br/psicopatologia/wiki/index.php?title=A_ponte,_de_Franz_Kafka, acesso em 30/10/2020.


SILVA, Márcio Seligmann. Franz kafka o mal estar como cultura ontem e hoje. In: Café Filosófico CPFL (programa da TV Cultura) Disponível em: https://youtu.be/RHk-AfryEU4, acesso em 30/11/2020.


TRAGTENBERG, Maurício. Franz Kafka – O romancista do “absurdo”. In: Revista Espaço Acadêmico, 2017. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/40175, acesso em 01/11/2020.



 

ESCRITO POR:

Juliana Wendpap Batista

Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense



Literatura e Sociedade

Seção destinada a debater as relações possíveis entre Literatura, História e Política. Por meio da análise dessas conexões, o objetivo é compreender os diferentes aspectos que compõem a vida em sociedade e suas relações possíveis.

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