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  • Foto do escritorMarcio Both

Sobre ensino remoto e afeto



Desde que a pandemia se instalou e que as aulas presenciais precisaram ser interrompidas, o tema do ensino remoto, do ensino a distância e dos usos possíveis da rede mundial de computadores para o ensino virou a bola da vez. Nesse universo, há opiniões totalmente críticas que entendem que aula só é aula se for presencial, tudo que fuja a isso seria uma espécie de arremedo de aula. Há outras que defendem a perspectiva que as ditas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) têm potencialidades e podem ser usadas positivamente para o ensino, mas ainda assim tais leituras não deixam de apontar para os limites desse uso. Outros analistas, por sua vez, são apologistas convictos dos usos possíveis das TICs e desconsideram totalmente os problemas da adesão total a elas. Esta última posição está mais presente entre aqueles que entendem a educação como uma espécie de mercadoria. Assim, não deixam de perceber que as modalidades de ensino a distância podem ser altamente lucrativas e interessantes a determinados segmentos sociais, independentemente se outros sairão profundamente prejudicados.


Dessas três leituras sobre o problema, acredito que a segunda é a mais adequada e inteligente, pois não desconsidera as potencialidades que as TICs carregam. Ao mesmo tempo, não deixa de lado os seus problemas, especialmente aqueles que dizem respeito a desigualdade social e econômica muito presentes em nações como o Brasil. Característica a qual impossibilita que um número significativo de pessoas tenham condições de acesso aos recursos necessários (equipamentos, redes de conexão, etc) para que as TICs sejam usadas em toda sua potencialidade.


A discussão sobre o uso da TICs para o ensino não é nova. Eu, por exemplo, estou envolvido nela desde os anos finais da década de 1990, quando era estudante do Curso de Licenciatura em História da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI) e atuava como bolsista de iniciação científica em projeto orientado pelo professor Paulo Afonso Zarth. O objetivo da pesquisa de iniciação em que estava envolvido era investigar as possíveis relações entre o ensino de história e a proposta encampada pela Unesco de estabelecer no mundo uma ‘Cultura de Paz’.





No desenvolvimento das análises sobre este tema percebemos que a Internet vinha se tornando um locus em que o ensino de história estava muito presente. Na época (antes do boom das redes sociais) existiam diferentes sítios eletrônicos que tinham como foco a história e, ao analisar tais sites, percebemos que em sua maioria eles eram como que uma reprodução online dos conteúdos que eram característicos dos livros didáticos.


Munidos dessa constatação inicial resolvemos fazer um experimento, ainda que localizado, entre os estudantes do ensino fundamental e médio do município de Ijuí/RS para verificar as possibilidades que a Internet poderia oferecer para ensinar história. Para tanto, escolhemos aplicar a pesquisa entre estudantes da rede pública e privada de ensino. No primeiro caso foi escolhida a Escola São Geraldo, localizada na periferia do município e, no segundo, a Escola Francisco de Assis, vinculada a Unijui.


Na época a escola São Geraldo não possuía laboratório de informática instalado, computadores e tudo mais. Na verdade, a Internet ainda era uma novidade no Brasil do final da década de 1990, principalmente nos municípios do interior. Para contornar esse limite da escola, juntamente com a professora Ana Maria Sandri e Graciele Fabrício, convidamos os alunos da oitava série do ensino fundamental a desenvolverem um trabalho de pesquisa no laboratório de informática da Unijui. A tarefa que deveriam executar era a de utilizarem a Internet como ferramenta para realizar uma pesquisa sobre a história dos índios no Brasil.


"Chegando ao assunto "computador", ele foi muito importante nesse trabalho, pois muitos colegas nunca haviam tido acesso ao computador, proporcionando um primeiro contato, tanto com o computador quando com a Internet" - Rodrigo Pedrozo, Person dos Santos, Tiago da Cruz e Márcio Rigo (estudantes do Colégio São Geraldo)
"Este trabalho foi muito importante e significativo, desde a pesquisa, montagem e apresentação. Na pesquisa tivemos o auxílio do computador - Internet - que para maioria foi uma novidade que ajudou muitos e, para outros, nem tanto, pois além de fonte de pesquisa serviu para entrar em outros sites desnecessários e isso atrapalhou um pouco o progresso do trabalho"- Sabrina Rodrigues, Deise de Moraes, Diego Beier, Jusiê de Moraes, Michel Atkinson. (estudantes do Colégio São Geraldo)

A mesma experiência foi executada com os alunos do segundo ano do ensino médio da Escola Francisco de Assis, os quais foram acompanhados pela professora Sandra Maria do Amaral. Neste caso, os alunos tinham acesso livre aos laboratórios da universidade e, além disso, parte deles tinha acesso a Internet em suas casas. Eis a primeira diferença importante que nos apontava para os limites do uso das TICs para o ensino.


Contudo, a experiência prática demonstrou que mesmo os estudantes da escola pública, cuja maioria teve o primeiro contato com a Internet nesse momento, não tiveram grande dificuldade em dominar a tecnologia e descobrir os mecanismos de seu funcionamento. Na verdade, o interesse desses estudantes pareceu ser maior do que entre os estudantes que já conheciam a ferramenta. Para alguns não era só a primeira vez, mas talvez uma das poucas possibilidades que teriam de mexer em um computador e navegar na Web. Muitos sabiam que isso não iria se repetir tão facilmente e em curto espaço de tempo.


Problemas ocorreram na execução da experiência, tais como dispersão, busca de assuntos que não tinham relação direta com o tema da pesquisa, desinteresse de alguns, dificuldade em lidar com a máquina e coisas do gênero. De todo modo, mesmo que a experiência tenha se restringindo a um número pequeno de estudantes, um dos resultados a que o estudo chegou foi a de que é possível dinamizar a forma como se ensina e se constrói conhecimento utilizando as redes de comunicação e informação, tanto no que se refere a sua produção, quanto a sua disseminação.


"Por nós, alunos, não sabermos usar corretamente o meio, houve uma pequena dificuldade na hora de usar a Internet, mas como alguns alunos sabiam utilizar ajudaram os colegas o que facilitou muito o trabalho realizado. Foi muito interessante usar a Internet na pesquisa. O trabalho não se tornou tão cansativo e a Internet é um meio que está sendo sempre inovado." - Carla Scherer (estudante do Colégio São Geraldo).
"Foi uma forma diferente de se estudar, menos cansativo do que pesquisar em livros. Seria muito bom se tivéssemos mais oportunidades como esta para realizar nossos trabalhos"- Daiane Moro (estudante do Colégio São Geraldo).

Outro resultado da pesquisa foi o de que, mediante a realidade de desigualdade social que caracteriza a sociedade brasileira, muito presente no caso dos estudantes da Escola São Geraldo, deveria ser papel do Estado garantir de forma ampla e gratuita que as pessoas tivessem condições de acesso a estas ferramentas. Sem resolver esse problema, as potencialidades verificadas a partir da experiência perderiam totalmente sua validade.

Evidentemente que a solução mais adequada seria a inexistência da desigualdade social, mas este é outro tema, o qual exige outra discussão.


Dessa forma, a conclusão geral do experimento foi a de que o uso da Internet pode ser um meio interessante para o ensino, para potencializá-lo, mas isso tudo está muito diretamente vinculado as condições de acesso. Por sua vez, só isto não basta, pois há outro elemento muito importante para que essa equação funcione: a presença docente. Sem ela e sem que os professores estejam capacitados para o uso dessas ferramentas, perdemos em potência.


Nesse caso, o estudo também apontava para o papel do Estado em oferecer a rede pública de ensino todo o aparato necessário para que os estudantes tenham condições de acesso as TICs (equipamentos, recursos, técnicos, infraestrutura, etc). Na mesma perspectiva, concluíamos que deveria ser tarefa do Estado garantir condições para que os professores se qualificassem. A qualificação docente para o uso dessas ferramentas é fundamental, a fim de que eles tenham condições de desenvolver metodologias de trabalho adequadas para o uso da TICs. Também verificávamos que os cursos de licenciatura deveriam investir no sentido de que seus alunos saíssem da graduação conhecedores dessas ferramentas e metodologias, seus problemas e positividades. Algo que parece ser profundamente atual, mesmo depois de passados 20 anos.


Diante disso, gostaria de destacar o protagonismo da pesquisa realizada, cujos resultados foram condensados no caderno “Ensino de História e Internet: relatos de experiências”, organizado pelo professor Paulo Zarth e publicado pela editora da Unijuí nos idos de 2001. Neste material, além de algumas análises iniciais desenvolvidas pelos professores e pesquisadores envolvidos no projeto, também é possível ler as considerações e avaliações feitas pelos estudantes que participaram da experiência.


Hoje, quase duas décadas depois, a discussão volta a baila, ou melhor, ganha força, visto que ela nunca saiu do horizonte. Por sua vez, uma característica interessante de todo esse processo é a de que, comparativamente a problemática que orientou a pesquisa relatada, os temas que compõem a pauta de discussões atual ainda são muito parecidos. Na mesma perspectiva, as posições sobre o problema não mudaram muito. No meu caso, muito movido pela experiência relatada até aqui e de outras que fiz já na condição de professor do ensino superior, continuo a acreditar nas potencialidades da Internet e das TICs para o ensino, para a produção e a divulgação do conhecimento.


"Acho também que a Internet, o meio mais usado agora, foi de grande importância. Eu não sabia que era tão fácil pesquisar nos computadores. Se eu tiver novo oportunidade como essa eu irei participar com maior prazer." - Diego Krahn (estudante do Colégio São Geraldo).
"Achei muito interessante pesquisar na Internet. Além de ser uma maneira mais divertida de se aprender, é rápido para pesquisar sobre o assunto que queremos. Acho que esse tipo de trabalho deveria se repetir mais vezes." - Diuli dos Santos (estudante do Colégio São Geraldo)

Na mesma linha, continuo a verificar que sem condições de acesso amplo e qualificado, tais potencialidades se perdem ou só ficam circunscritas a uma pequena parcela da população. Também mantenho a leitura de que sem qualificar os professores que estão na ativa e aqueles que ainda estão em processo de formação para o uso de metodologias adequadas, os resultados podem ser precários. Ainda nesse sentido, sigo convicto de que sem a interação presencial, sem contato, as TICs podem mais atrapalhar do que ajudar, pois ensino e educação é afeto e afeto exige presença, não absoluta, pois ela sufoca, mas presença. Do mesmo modo, a conclusão de que as condições de acesso a essas tecnologias devem ser democratizadas e que o Estado deve exercer papel de protagonista nesse processo continua válida.


Algumas das experiências de ensino remoto que vem sendo implementadas atualmente – em um contexto de pandemia e sem levar em consideração alguns dos problemas que aqui foram apontados – são demonstrativas do quanto o uso inadequado e precipitado das TICs é problemático. Nesse sentido, não nos faltam notícias de estudantes sem condições de acompanhar as aulas que vêm sendo realizadas remotamente e de professores que não receberam a devida capacitação para o uso dessas ferramentas. Também se tornou corriqueiro encontrar relatos de empresas que vem sobrecarregando de trabalho seu quadro docente, quando não utilizando o ensino a distância unicamente como maneira de aumentar os seus lucros. Em consequência disso e de outros fatores, também pululam notícias de professores que vêm adoecendo por serem obrigados a exercer seu ofício de forma atabalhoada e precária, bem como de estudantes que vem sendo prejudicados no seu processo de formação.


Contudo, circunstâncias como estas não devem ser impeditivas da discussão e muito menos devem levar a negação intransigente dessas ferramentas, sob o argumento de que utilizá-las significa aderir a ideia de que a educação é uma mercadoria. Aqui e para finalizar, lembro um amigo que quando discute estas questões gosta de mencionar que Paulo Freire nunca negou a potencialidade do mimeógrafo para a educação e para o ensino. Em outros termos, o problema não está na tecnologia, na máquina, na rede, mas na sociedade, mais precisamente na desigualdade social e, também, no modo como as relações sociais de trabalho estão organizadas. Logo, já devíamos ter aprendido com os Luddistas do início do século XIX, quebrar a máquina não leva a nada.



Texto inicialmente publicado no Jornal Sul 21, em 24/06/2020. Disponível em: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/06/sobre-ensino-remoto-e-afeto-por-marcio-antonio-both-da-silva/

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