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  • Foto do escritorMarcio Both

2020.Quando realidade e ficção se encontram em uma rua de Porto Alegre



Trinta e seis anos após seu nascimento, ocorrido em uma tarde ensolarada e fria de junho de 1984 em uma dessas maternidades quaisquer de Porto Alegre, Winston Smith considerava-se um homem realizado. Tinha sua morada própria, um apartamento de três dormitórios situado no andar superior de uma loja de antiguidades localizada na rua André da Rocha, onde residia com sua esposa Júlia. Os dois haviam se conhecido, fazia coisa de cinco anos, nos corredores da repartição pública em que trabalhavam e, desde então, não mais se separaram.


O fato de ser funcionário público concursado, era uma das realizações pessoais de Winston. Considerava que a estabilidade garantiria uma vida tranquila a si e a seus descendentes. Juntamente com Júlia, entretinha planos de ter uma família composta por no mínimo um casal de filhos; uma menina que se chamaria Lenina e um menino cujo nome seria Bernard. Nomes que escolheu em tributo a outro autor e livro que gostava muito, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Ao fazer isso, também buscava repetir seu pai que lhe deu o nome de Winston Smith em homenagem a George Orwell.


Winston, gostava muito de ler. Seu livro de cabeceira, enfatizava toda vez que se envolvia em conversas sobre literatura, era o 1984 de Orwell, tanto por sua qualidade narrativa, como pela mensagem que carregava. Havia perdido as contas de quantas vezes leu o livro, sabia alguns trechos de cor e, sempre que surgisse alguma oportunidade, os recitava a seus interlocutores.


Eram vários os motivos que justificavam sua predileção por este livro, o primeiro estava no fato de que era homônimo do personagem principal. Do mesmo modo, assim como no livro, a mulher que escolheu para partilhar sua vida chamava-se Júlia. Neste caso não foi coincidência, pois desde que leu o 1984, Winston sempre buscou entreter relações mais duradouras com mulheres que atendessem por este nome.


Outro ponto em comum entre os dois winstons, era o local de sua residência. Logo após a decisão que ele e Júlia tomaram de “juntar os trapos”, também resolveram encontrar um local para, gostava de dizer, “se esconderem da chuva”. Assim, não foi aleatoriamente que o Winston da rua André da Rocha escolheu adquirir, via financiamento realizado na Caixa Econômica Federal em parcelas mensais que se encerrariam em 30 anos, um apartamento localizado sobre uma loja de antiguidades. Isso o fazia lembrar do esconderijo que o Winston e a Júlia de Orwell haviam encontrado para seus encontros secretos, onde buscavam fugir dos olhos do “Grande Irmão” e das Tele-telas.



Todavia, de todas as coincidências que aproximavam a vida dos dois winstons, a mais interessante estava no trabalho que realizavam. Neste caso, o Winston da André da Rocha era, assim como o de Orwell, funcionário de um Ministério. Não o da Verdade como na ficção, mas o trabalho que desempenhava era muito semelhante. Ele era responsável por gerenciar a parte editorial e de conteúdo de uma dessas publicações oficiais do governo federal. Todos os textos (leis, decretos, decisões, portarias, etc.) passavam por suas mãos antes de serem publicados, era como que uma espécie de verificador de conteúdos e corretor ortográfico. Seu bacharelado em letras havia lhe garantido tal posto, sendo que a formação nessa área foi consequência do seu gosto pela literatura.


No exercício de suas atividades, porém, Winston estava percebendo que nos últimos meses algumas situações que vinham acontecendo estavam a aproximar a realidade da ficção. Verificava que, embora não fosse algo incomum que algumas decisões publicadas fossem retificadas, isso estava se tornando muito corriqueiro ultimamente. Situação que o incomodava duplamente, primeiro porque aumentava sua carga de trabalho e, segundo, porque, a luz do que havia aprendido na leitura do 1984, tudo estava a indicar que as coisas vinham seguindo trilhas perigosas.


Somava-se a isso a circunstância de que as retificações eram acompanhadas, produziam ou eram produzidas por um emaranhado de crises políticas, as quais não se restringiam ao universo de suas atividades profissionais. No mesmo sentido, o ocultamento de dados e a negação de determinadas situações estavam virando normalidade. As narrativas sobre os acontecimentos mudavam de uma hora para outra e já não era mais possível saber o que era de fato verdadeiro ou mentiroso. Em alguns momentos sentia que havia se transmutado no próprio Winston de Orwell e isso o assustava.




Diante dessa realidade seu cérebro andava a mil. Tinha dificuldades em encontrar alternativas para o futuro e, um tanto perdido e atônito diante do que vinha se apresentando, não conseguia desatar os nós que os acontecimentos cotidianamente vinham apresentando. Além disso, fazia pouco que o mundo estava sendo assolado por uma pandemia que, para evitar a sua expansão, exigia que as pessoas ficassem isoladas em suas casas. Contudo, em alguns contextos e entre algumas autoridades ela e seus efeitos eram relativizados e as mortes que vinha provocando diminuídas ou satirizadas com homenagens espúrias.


Tudo somado, fazia com que suas perspectivas de futuro, inclusive os seus planos relativos a uma futura prole, perdessem em sentido e em prioridade. Pensava na vida e verificava que, embora tivesse feito muitas coisas inspiradas no livro de Orwell, era um democrata. Entendia que as ações que tomou inspirado no 1984 tinham o sentido de lembrar a si mesmo e aqueles que estavam na sua volta dos perigos que caracterizam a vida fora da democracia, achava isso bonito e republicano.


Por sua vez, ao ter que atuar como o Winston da ficção, tendo que corriqueiramente mudar o conteúdo de algumas decisões, ao perceber que isso vinha tomando ares de normalidade, o Winston da André da Rocha concluiu que, assim como Orwell havia feito na época da Guerra Civil Espanhola, era hora de ir as ruas, de ir a luta. Caso contrário, o mundo que ele conhecia do jeito como conhecia, paulatinamente iria ruir ou se transformaria no mundo descrito nas páginas do seu livro preferido.



Texto originalmente publicado no Blog Curta História, em 29/06/2020. Disponível em: https://www.canalcurtahistoria.com/post/2020-quando-realidade-e-ficção-se-encontram-em-uma-rua-de-porto-alegre

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